Artista com irreverencia impar não morreu nas noites de bares cariocas
Por Luiz Gustavo Souza
"À noite, a funcionalidade do bar é muito importante para a vida local e da própria cidade”, aponta o Jornalista cultural e crítico musical Leonardo Lichote. Músicos da noite permitem cantar pela perspectiva da pluralidade as canções dos intérpretes contra a apatia nos bares no Rio de Janeiro.
A máxima “eu queria ser Cássia Eller” da canção de Péricles Cavalcanti se tornou conhecida por interpretar a versatilidade da cantora que é símbolo para artistas de bares com música ao vivo. Lichote acredita que, em um contexto histórico movimentado pela cultura, artistas da noite, participam da construção da cidade, atribuindo sentido, como cronistas urbanos ou com um legado que não se desmancha com o tempo.
Alguns intérpretes tentam olhar para as questões com certos distanciamentos. Há outros, como Cássia que se envolvem, se queimam, se misturam na lama para criar uma arte potente e interessante. E são esses artistas que com o passar dos anos, continuam falando ainda que estejam mortos.
O Rio de Janeiro tem bares que fomentam cenários fundamentais para os encontros da música, aponta Lichote. No entanto, as restrições do covid-19 desde o ano passado, reformularam a dinâmica semanal da vida noturna. Para o jornalista, todo produto cultural é ponte e está em diálogo com seu tempo e cidade. Hoje, o tempo atua no sentido de misturar, no sentido aglutinar experiências.
A interpretação e dinâmica dos bares com música ao vivo há muito fazem parte do imaginário social do Rio de Janeiro. A Lapa desde antes de Noel Rosa é um espaço de encontros, assim como a Lapa dos anos 90 para 2000’s foi fundamental para artistas como Teresa Cristina por exemplo. O Rock no Rio de Janeiro, se espalha no polo da Tijuca, Piedade e adjacências. Entretanto, é enquanto o músico está produzindo que ele atua no bairro, na cidade. Aqui entra o papel do crítico é também olhar para além do que está colocado, mas Cássia segue viva nos bares do Rio de Janeiro, cidade onde nasceu e viveu até os 6 anos de idade.
De acordo com o jornalista, desde a Praça Varnhagen, localizada no bairro da Tijuca no qual funciona um polo de bares com música ao vivo ao Áudio Rebel, à cena do samba espalhada em rodas de samba pela cidade, fazem dos bares testemunhas da cidade que está se recuperando de suas mazelas.
Os contextos e lugares são variados, público disperso focado nos comes e bebes, aqueles que tentam transformar o músico de bar como um jukebox, cujo repertório deve corresponder aos seus anseios, etc. A circulação da música é fundamental na dinâmica dos bares. Segundo Lichote, ao surgir leituras da cidade maravilhosa “moderna”, sobretudo a partir da década de 70, com Jards Macalé, podemos pensar a música a partir da dinâmica malemolente dos bares com música ao vivo, seja de samba, mpb ou de rock, porque a música brasileira, a música no Rio de Janeiro é tributária aos bairros considerados não centrais.
“Nos anos 80, com a geração do rock nacional, o Rio de Janeiro cantou sua juventude através de Hebert Viana com Paralamas do Sucesso, posteriormente temos o funk construindo espaços outros. Até chegarmos em artistas como Cássia Eller, que interpretam o Brasil com olhar e voz de cronista”.
Para o jornalista musical Bernardo Araújo, o artista que faz a vida no barzinho, permanecem fiéis a duas coisas, o dinamismo e a malandragem. Segundo ele, quando pensamos em artistas como Ana Carolina, Maria Gadú, e Zélia Duncan que assim como Cássia tocaram nos bares, percebemos o gingado que a música ao vivo proporciona.
“Quanto mais vocabulário você adquirir melhor o músico se expressa. Mesmo que o músico esteja num barzinho tocando bossa nova por duas horas, samba ou voz e violão, e depois se for tocar numa banda de black metal, esse estilo dele terá certamente mais dinâmica e vocabulário maior do que quem não passou pela escola do barzinho”.
Hoje Cássia é tratada como um ícone nacional para além da música, aponta Araújo. Para ele, a cantora é um símbolo da versatilidade que temos no Brasil, por sermos cercados por diferentes tipos de música. Segundo o jornalista, ao invés de ser apenas intérprete, Cássia é potência.
“Ao experimentar uma canção do Camarón de La Isla ou canções do Nirvana, a palavra que a define para mim é mistério. Digamos Paralamas do Sucesso que começam calçados no The Police, depois com as misturas nacionais, de Gilberto Gil, música caribenha, entre outros viraram essa potência. A Cássia era um pouco disso, a vivência com barzinho, mais tudo que ela ouvia, a amizade com o Nando Reis e sua atitude fazem dela uma das maiores artistas nacionais”, aponta o jornalista.
Para o músico e instrumentista Márcio Ricardo, a experiência de tocar nas noites foram fundamentais para o seu desenvolvimento pessoal, pois segundo ele, pode conhecer outros Rios de Janeiro. O músico de 44 anos, iniciou de modo inusitado nos bares. Após ter a certeza da reprovação no vestibular, foi convidado para assistir um ensaio de músicos em frente à UERJ. Aos dezoito anos foi convidado para tocar no bar Chopp Gol, no Maracanã.
“É muito bonito ver como as coisas aconteceram naturalmente na noite. A música enquanto potência, é muito maior do que a gente imagina. Eu vi tanta coisa, reconciliação familiar, pedido de casamento entre outros. Eu só tento absorver o máximo que ela me ensina”.
Assim como Cássia Eller, o instrumentista da noite, direciona seus gostos musicais de modo diversificado. Indo do Rock, Blues, Jazz e samba, mas sem perder a autenticidade. Para Márcio, intérpretes como Cássia são raros, pois passeiam com segurança e atitude por todos os lados musicais.
“Dizem que o artista tende a ser mais sensível que os outros, e se trabalhamos na noite, desenvolvemos o amor também. A música de qualquer gênero é um excelente remédio. Tudo tem som, desde que o mundo é mundo. O samba enquanto escola me deslocou não só através dos bairros, mas de mentalidade. No subúrbio, as pessoas têm o samba como filosofia de vida. Os bares são pontos de encontro. Na Zona Sul, também tem uma forma respeitosa, mas diferente pelo samba ao vivo”.
Márcio Ricardo também pontuou que atualmente a música abriu mais espaço para os artistas da noite, embora a realidade segundo ele, esteja incerta devido à pandemia mundial. Para o músico, é preciso aprender a entender como a noite carioca irá reagir frente as possibilidades inusitadas.
Segundo o músico, antes de tocar nas noites, a música para ele era como loteria, ou você sabe os acordes ou não sabe de nada. Com o tempo, Márcio garante que o musico se forma da mistura de influencias. Outro fator que o instrumentista ressaltou foi o acolhimento e comunicação entre os músicos que, segundo ele, foram fundamentais para desenvolver a facilidade de se virar para tocar as canções que são demandadas.
“A minha formação como músico teve um salto nas rodas de samba. Ao ponto de tocar músicas acompanhando o tom, parecido com os artistas de jazz. Eu tive que treinar minhas percepções para saber o que tocar no violão em situações assim. A melhor escola para um músico é a prática da rua, da noite, dos bares. Não adianta ter uma base técnica bacana, sem a vivência da troca, da roda de samba ou de música em geral. Já chorei tocando, então sempre digo deixa a tristeza sair também, ouçam música e valorizem os profissionais da noite”, revela o músico.
Há duas décadas, acompanhando o legado dos bares com música ao vivo, Cassia Eller segue viva e presente nas músicas, na pedagogia e nas noites cariocas. A malemolência da música ao vivo não seria a mesma sem ela. Para Leonardo Lichote, é comum o sentimento de pensarmos sobre o que ela ou mesmo Chico Science, certamente estariam fazendo na música atual. Mas, para ele, além da questão técnica, ela segue sendo potência. Viva a cassialidade nos bares!
Comentarios